Trabalho Digno e Negociação coletiva

Filipe Lamelas e Pedro Rita

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SUMÁRIO: O desenvolvimento da contratação coletiva encontra-se intimamente ligado à expansão do Estado Social, sendo indissociável do próprio conceito de democracia. Um dos seus mais importantes propósitos é potenciar a redistribuição dos recursos. No entanto, nas últimas décadas, esse escopo foi posto em causa.

Antes de 2003, o contexto jurídico nacional, no que à dimensão coletiva das relações de trabalho diz respeito, previa o monopólio dos sindicatos na negociação e celebração de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho. O princípio da filiação, que determinava a eficácia pessoal direta das convenções coletivas relativamente aos trabalhadores filiados nos sindicatos e associações patronais representadas, também era um dado adquirido. O princípio do tratamento mais favorável (cujo sentido era o de os instrumentos de regulamentação coletiva apenas poderem dispor em sentido mais favorável do que a lei) era outra das traves-mestras do sistema: a negociação partia sempre de um mínimo adquirido. A reforçar essa ideia, o facto de todo este sistema assentar numa lógica de vigência indeterminada das convenções coletivas, que se mantinham em vigor até serem substituídas por outras.

Número de IRCT publicados, por tipo (1995-2015) Número de IRCT publicados, por tipo (1995-2015)
Fonte: Livro verde sobre as relações laborais 2016.

As alterações legislativas introduzidas com o Código do Trabalho de 2003 (CT2003) tiveram repercussões profundas no equilíbrio negocial entre as associações patronais e os sindicatos, com o notório enfraquecimento da posição negocial das associações representativas dos trabalhadores, e determinaram a própria reconfiguração do modelo da negociação coletiva.

Reflexo dessa realidade é o facto de o número de convenções coletivas celebradas ter atingido, em 2004, um mínimo histórico à data, sem precedentes no período democrático: levando em consideração a média dos últimos dez anos anteriores à entrada em vigor do CT2003 (1993-2003), o número de instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados ficou-se, sensivelmente, pela metade. Nos anos subsequentes, ainda que se tenha verificado um aumento do número de convenções subscritas, a verdade é que a média desses anos seguintes (2004-2009) é significativamente inferior ao período que antecedeu a entrada em vigor do CT2003 (1998-2003).

Trabalhadores por conta de outrem potencialmente abrangidos por convenções coletivas publicadas (novas ou revistas) Trabalhadores por conta de outrem potencialmente abrangidos por convenções coletivas publicadas (novas ou revistas)
Fonte: DataLABOR e DGERT

A contratação coletiva é uma das dimensões presentes na Agenda do Trabalho Digno apresentada pelo atual Governo português. De entre as medidas relativas à contratação coletiva previstas nessa Agenda, sobressai, desde logo, a proposta referente à arbitragem necessária como a mais adequada e apta a cumprir os objetivos da reforma legal anunciada de revitalização da regulamentação coletiva negocial. Contudo, o sucesso e adequação desta medida aos fins proclamados pela Agenda do Trabalho Digno dependerá, largamente, da fórmula legal concreta em que se vier a concretizar, sendo real o risco, caso a alteração do regime não seja a mais acertada, de o resultado obtido ser contraditório ou oposto ao pretendido.

As relações de trabalho em Portugal, na sua dimensão coletiva, podem, atualmente, ser descritas como um corpo híbrido – cuja categorização exige um estudo atento –, resultante de um conjunto de alterações e somas de enxertos que impedem o seu enquadramento num género típico. Essa atipicidade do modelo de relações coletivas de trabalho nacional pode revelar-se como uma das suas principais virtudes, em particular a capacidade de adaptação a um leque plural de reformas.